12 de agosto de 2012

das ausências permitidas

Ainda flagro passos seus na calçada, por onde nos trombamos repetidas vezes, no último ano antes da sua morte. Você seguia magro elegante, sem nuances dos oitenta anos. 1,75 m. Os dois olhos tinham cores de noites quentes. Arqueava a coluna como quem precisa enraizar-se no chão. Talvez aí a demora para percebê-lo. Você guardava uma inspiração nasal para cada minuto do seu andar, aprofundava-se em modo introspectivo e voltava a caminhar com o corpo ainda suspenso no presente. E assim parecia prender a vida entre os postes, desnovelando-a, em cada minuto adiante... em direção à Praça das Orquídeas, onde pousava o melhor sol das oito da manhã - como costumava dizer. 

Eu nunca saberia sua idade, se não fosse a necessidade da bengala. Mas agora o que eu preciso lembrar para escrever aqui não é isso. Não era a velhice opaca, que impossibilitava as caminhadas sem a presença da enfermeira antes de não poder mais trafegar até a praça. Não, eu preciso escrever sobre o momento que nos conhecemos e nos reencontramos quase todos os dias, até o início da morte isola-lo aos poucos, e eu precisar vê-lo partir. 

Escrevo aqui para lembrar quando passei a entender o fim da minha solidão sem versos  fraternos por não ter conhecido o meu pai. Porque sempre precisei fazer das comemorações  do segundo domingo de agosto o dia de quem quisesse representar essa presença na minha vida. Então minha mãe, tias, tio-avô, primos das tias revezavam para ir na comemoração da escola, quando se festejava a tal data. E para me livrar da culpa por essa ausência ingrata, dizia aos coleguinhas que papai viajava muito e como a família era grande e todos queriam ter uma filha como eu, a cada ano eu ganhava um pai diferente. E havia em casa até um sorteio para ver quem realmente iria ser o meu pai do ano. Uma atitude democrática, diziam alguns, para tamanha disputa. Invenções infantis para não carregar uma tonelada de sensações hostis à orfandade paterna. 

Afinal, doía não saber o tom da voz, o tipo de cabelo e o tamanho do sorriso quando estava feliz, do meu pai verdadeiro. Até então escondi-me com pais emprestados, e resolvi absolvê-los um por um no mesmo dia em que você me visitou no hospital, depois do atropelamento, bem na sua frente, na manhã do dia 25 de maio de 2009. Eu saía da minha casa para pegar o ônibus na parada da Avenida João Dias, dez metros depois, fui arrastada pela motocicleta que vinha na contramão. O motorista não parou e sendo aquelas primeiras horas o turno pouco habitável do bairro Vale do Paraná, principalmente nas férias do Colégio Central, pensei mesmo que nenhuma ajuda chegaria tão logo, por não tê-lo visto ali, minutos antes. Foi quando ouvi ao longe, embora tão próximo, sua voz nervosa e abafada pela lentidão ao se dirigir até mim. Eu ali estatelada, com os joelhos ensanguentados, entre a dor na cabeça, o flash de realidade do granizo quente me apoiando e a sonolência dos olhos entreabertos, já preparada para um desmaio, senti sua mão no meio da minha testa e apaguei.