eu, samba

Do lado de lá da ponta do mar (*)
Nunca escrevi nada sobre Santos porque esta cidade está em mim todos os dias: minha infância, amigos, sonhos, todas as minhas buscas são daqui. Morei muitos anos (muitos mesmo) na Ponta da Praia. Trata-se de um bairro residencial, no canal 7 (santistas se direcionam pelos canais), que não tem nada de muito especial, a não ser o fato de eu ter visto a minha infância e adolescência se desenrolarem por lá. Morei sempre no mesmo prédio, destes em formato de caixotes (três andares, com varandas ou não), só vistos por aqui. Por outro lado, nada acontece na Ponta da Praia, terra de Marlboro aos domingos, um deserto só.
Quando criança, meus irmãos e eu íamos à praia, ou com os nossos pais ou com a mãe de algum coleguinha. E se hoje a praia fica a três quadras daquele mesmo prédio, antigamente, o passeio era distante, quase uma viagem. Então veio a adolescência e a distância se modificou. Não demorávamos tanto para chegar até o mar, em menos de dez minutos meus amigos e eu estávamos tomando sol, deitados em cangas, para curtir a maresia. Sem culpa. Sem preocupações. Ser praieiro podia ser um adjetivo bom no meio dos anos 90.
Mas ainda assim, algo nunca me fez crer que a Ponta da Praia era meu lugar. Estranha constatação. Demorei a saber que a vida em Santos ia para além do canal 7. Assim, comecei a frequentar os bairros próximos de outros canais, comecei a ver outros horizontescaiçaras. Passei a trabalhar perto do canal 3 e fiz a faculdade quase no centro da cidade, mais longe ainda do mar da “Ponta”, passei a me descolar do mundo quase perfeito de um bairro nobre. Sentia um desejo enorme de sair daqueles arredores porque algo realmente não fazia mais sentido ali.
Foi quando, há cinco anos, uma grande amiga quis me levar para conhecer um bairro perto do curvão. É, essa era a referência: o curvão do canal 1. Distante da praia, próximo da entrada da cidade. “Vamos lá, Day, no Marapé, você precisa conhecer uma roda de samba que tem lá, tenho certeza que vai adorar”. Samba? Lá fomos nós… Para a roda de samba do Ouro Verde.
E um grande susto!
Um choque e um achado! Eu estava no Marapé – a partir do morro, ir ao mar a pé… e é assim que acontece…  pois há um morro que cerca-o e, ao segui-lo, chega-se até o mar.
Meu Deus, que lugar é esse? – perguntei, ao colocar os pés na porta. “Quem são essas pessoas?” “Elas (também) são negras?” Olhava ao redor e me reconhecia, depois de vinte e poucos anos, pela primeira vez na vida. Afinal, meus cabelos crespos eram uma exceção onde morava. E foi por muito tempo motivos de chacota. Entre aquelas mansões da Ponta da Praia, entre o vazio das pessoas que mal davam oi ao vizinho, chegar ao Marapé deu lugar para certo acolhimento ao desassossego de outrora. Para além disso, Santos é considerada a primeira cidade abolicionista do Brasil, e os três quilombos existentes residiam nas proximidades desta região. Assim, não é à toa tal concentração de negros. Porém, pasme, essa é a exceção mesmo. Andando pelo miolo de Santos, às vezes até desconfio que existam negros no mundo.
Um fato bem particular do Marapé é a sua identidade musical. Alguns se arriscam a compará-lo com a Lapa carioca. Dezenas de músicos formaram-se no bairro, aprenderam a tocar seus instrumentos de corda no quintal do Seu Lili, fundador da roda de samba do Ouro Verde.
Ouro Verde é o nome da sede do clube. É um clube de bairro. Os associados jogam carteado, bocha ou conversa fora. É… tudo ali existe de uma forma espantosa, as pessoas têm muito orgulho de morar lá e dizem que só sairão quando morrerem.
O bairro já se modificou muito, pelo que os antigos dizem, parte por causa da urbanização sofrida pela cidade inteira. Os chalés de madeira deram lugar aos caixotes e, em breve, com a especulação imobiliária será a vez da chegada dos espigões (edifícios com mais de dez andares). Ainda assim, a velha guarda do samba permanece fazendo história, o que arrisco a dizer: o samba do Ouro Verde não deixará este bairro acabar tão cedo.  Todos os sábado eles estão lá, a roda e seus integrantes: os moradores do bairro, moradores vindos de outros canais, pessoas de São Paulo, adultos, crianças, universitários, adolescentes, o Secretário de Cultura, a funcionária da padaria, a patricinha…
Todos se chegam e logo se contagiam por uma alegria e comoção local porque não formam apenas uma roda de samba. Descobri mais tarde que todos são do Marapé desde a tenra idade, estudavam na mesma escola, alguns casaram com a irmã do amigo da roda. E principalmente, são unidos por uma forte amizade…  mais o elo musical.
Marapé, seu samba e sua gente tornaram-se minha principal referência de Santos. É verdade que a praia guarda pequenos segredos na minha forma de me deslocar nas cidades. Morar no canal 7 engloba toda nostalgia da infância, das brincadeiras com os irmãos e da saudade dos meus pais. Viver num lugar chamado Ponta da Praia esconde um gosto poético, até. Afinal, eu morava onde a praia começa. Quantas vezes fui até aquele pedacinho de mar para levar algum sentimento afoito. Porém, só lirismo não nos preenche. Sempre soube que ali não vivia tudo de mim. Não me reconhecia. O lugar que moramos precisa nos apaziguar. E hoje o samba do Marapé é o meu porto seguro, mesmo longe das águas do mar.


(*) Escrito originalmente para o blog: www.cidadeando.wordpress.com