30 de junho de 2012

carta aberta para o escritor Fábio Mandingo

Salvador, 30 de junho de 2.012.
Querido Mandingo,


Precisei de alguns dias para me recompor depois de acabar a leitura do seu livro "Salvador negro rancor". E o mais interessante, antes mesmo de finalizar, encontrei-o no Gerônimo, e quis contar da minha admiração pela sua escrita literária, mas não consegui. Fiquei nervosa ao ter ali tão perto de mim o escritor com quem dialoguei, nos últimos dias, com quem sofri um bocado, em cada conto, junto aos seus personagens infectados por vidas periféricas e propositalmente arredias.

Por isso, agora escrevo para você.. 

Quando nos encontramos no topo das escadarias do Passo, me vi emocionada - uma fã - diante àquele que deu nomes e cenários para os inúmeros habitantes da capital baiana, renegados pelas inexistentes políticas abolicionistas, até hoje, mas que em "Capitães de areia" (Jorge Amado) são heróis (ou anti-heróis, não importa), mesmo se famintos e desgraçados, um equívoco absurdo. Além disso, com uma ironia sutil, você aponta sobre gringos que tornam bairros inteiros na cidade como suas comunidades alternativas, sem nunca pensar em respeitar a cultura local, a gente nativa, as vidas tantas vezes roubadas por aqui; e toda a história de exploração que já conhecemos. Ou seja, pude vivenciar com os seus personagens as dores que ainda assolam tantos e tantos, todos os dias, de forma cruel.

Moro em Salvador faz quase cinco meses somente, e ao ler o seu livro, percorri agoniada as suas narrativas, foi como acompanhar as gravações de um filme com as cenas que presenciei desde quando aportei por aqui. Afinal, a Bahia do Jorge Amado só contempla uma fatia ínfima personificada na identidade baiana, ideia vendida nos quatro cantos do Brasil. Assim, preciso confessar, pensei que encontraria mais das tardes em Itapoã em SSA, aquelas ditas por Vinicius de Moraes, ou a terra do preto doutor de Dorival Caymmi, não, não foi isso. 

Eu vi mesmo um cordão  negro de gente vigiada por uma alegria não-democrática, enquanto asseguravam o carnaval dos turistas e foliões, do lado de dentro do trio elétrico. Eu vi meninos raquíticos, descalços, sombrios pelo vício do crack, enquanto puxavam sacos de estopa e latas amassadas para trocar por mais uma pedra no fim do expediente da madrugada. Eu vi o cassetete do policial descer uma, duas, três vezes, no meio do São João, no bêbado inoportuno que traga um gosto pequeno de felicidade no arrasta pé da Ribeira. Eu vi muito desespero ladeira abaixo, pelos gritos dos negros soterrados nos caminho íngremes das ruas do Pelourinho ou agora sufocados pelas tintas coloridas das faixadas das casas, enquanto aguarda-se a Copa do Mundo. 


Eu vi e senti essa solidão e desespero de não ter identidade, CEP, pai, mãe, presente ou futuro, de gente que perdeu a vida antes de nascer.

E por mais contraditório que possa parecer, eu também encontrei sujeitos evocados pela persistência da construção na busca de outros percursos através da resistência negra. Tudo isso, graças à mandinga e o axé. Algo que não ensina, nem aprende, porque nasce/ torna-se capoeira, como você tão bem descreve no conto homônimo do livro. E como diz o sambista baiano Martinho da Cuíca: malandragem não é pilantragem. E a malandragem é o terceiro elemento desse resistir sempre à margem. Então mandinga, axé e malandragem são as chaves da resistência; e não é de hoje, mas desde quando precisou-se imprimir na memória, em silêncio e resguardo a dança, música e orações dos pretos vindos do outro lado do Atlântico.

Bom, tenho que dizer que ficou muito difícil terminar essa carta. Agradeço muito por ter conhecido você e toda A Família, como você e Véio costumam dizer. Pois, foi a partir de vocês que pude entender uma maneira de enfrentar as angústias de se reconhecer fruto disso tudo. Eu carrego também as desesperanças dos seus meninos de rua, e luto para continuar a briga, porque não é a rasteira que derruba, e sim a auto-estima degradada pela ideia de não se poder ser sujeito da sua própria história.

Parabéns!

ÊA!

Um abraço,

Dayane






Imagens da série "Cotidiano". Em Salvador. Por Leo Ornelas.

29 de junho de 2012

dos excessos


O ir e vir vertical é de extremo desespero. Tenho abusado deste processo osmótico ao me magnetizar  por campos de emoções pueris, clandestinas, importadas no momento máximo da desilusão. Então deixo escorrer através dos meus dedos qualquer segurança - controle hedonista. Apoio os pés num método ausente de rigor para ganhar descompostura. 


Turva, quase voo.


Encontrei para isso algumas táticas de sobrevivência: boias flutuantes para não afundar, quando preciso subdividir os desejos até que se tornem constelações desconhecidas.


Assim, navego.


Desejos não cartografados ou  não contemplados em experiências reais sempre correm o risco de se perderem nos bastidores. Por isso, antes do ápice estelar, filtro as sensações emolduradas ainda na prévia da não-ilusão, de poder ser ainda um momento de plena emoção, a mesma do otimismo dos utopistas.


Sigo.


E tal desarmonia tem uma cor, vermelha. Não, o vermelho do batom-cereja, usado para convidá-los, rapazes, à sedução pela intimidade labial; não é o vermelho que aborrece o concreto do Morro do Chapéu, quando Elias ou Ivan ganharam duas balas perdidas num acerto de contas entre Fininho e Josias do Beco; não é o mesmo do choro no aborto programado de Sara ou Jussara, na sala improvisada para cirurgias sem acompanhamento médico regular no centro velho de SP; e tampouco o vermelho escarlate da bolsa da Maria C, que passou a cobrar 200 contos por duas horas de práticas sexuais. O vermelho aqui é epitelial. 


Vago.


A minha pele denuncia a matiz avermelhada de tanta desordem, está tomada pela alergia de silenciar os gritos miúdos da inconformidade com cheiro de azedume. Entre pelos e engenhos subcutâneos, guardo poucas soluções para harmonizar tais conflitos íntimos. São táticas sangrentas, entre veias e poros, para continuar sobrevivendo à dúvida do por vir e do vir a ser. 


Sem sonho.


4 de junho de 2012

ainda há algum tempo

Às vezes, a despedida chega antes da partida

5 horas da manhã. Passou dos lados opostos da cama, sem você notar o quê os entrecortava. De um lado, curvou-se o mais que pode - e quis acordar antes do despertador. Do outro, tentou um abraço seu, mas você não a tocou, nem a protegeu. Ficou ali, encolhida ou suspensa pela espera de vestir-se de outro dia, outras 24horas, outras demandas, mais um passo adiante e muitas tentativas por um aceno distante.

As noites de inverno sempre demoram mais para acabar. São como relógios de parede, enguiçados, em salas de casarões coloniais. Amplas e desabitadas. Sem conforto algum, sentia-se um ponteiro burro, domesticada pela finitude daqueles lençóis dispersos, eram as margens de um rio, os limites do casal.

Então levantaria a qualquer momento, embora buscasse o momento ideal, embora esperasse o espartano som, às 5h45.

(...)

O seu ronco emanava os descompassos territorializados pelas dúvidas e lembranças, pelas conversas que tantas vezes avizinhavam o sono, mas perderam de modo súbito a possibilidade de continuar existir.

Tornaram-se amantes plastificados pela total falta de proximidade atual?

(...)

As chaves ainda estavam do lado de dentro da porta, aguardavam algumas reviravoltas. Seriam cúmplices da  fuga. Já estava tudo armado.

Você sabia.

(...)

Entre levantar-se da cama e ir, não há narração possível. Nestes minutos, desapegou-se do chão, partiu-se em mil caquinhos, pensamentos soltos e nenhuma atenção para o trivial.

(...)

E saiu, não pela última vez, mas até não conseguir voltar nunca mais. Só não sabiam quando. Amanhã, ou depois e depois.