25 de setembro de 2011

puento ciego (III)

Olhou para mim com olhos de cereja. Não titubeou em nenhum segundo. E continuou a me olhar, como quem ganha um presente surpresa. Não entendia se olhava mesmo. Mas olhava.
E logo uma avenida nos alargava. 
O seu olhar fixou-se, preso no meu varal de desejos imunes. 
Então passei a sentar na mesma cadeira do restaurante da Araújo Medeiros, nas mesas da calçada, onde nos percebemos pela primeira e única vez. 
Nos outros dias, aguardava ansiosa sua passagem por ali, enquanto almoçava. 
Queria pedir informações suas. Será que alguém por ali saberia da sua rotina?
Passei a pensar num anúncio no jornal da cidade. 
Nenhuma informação precisa.
Somente aquele olhar delicado como seus passos, que ficaram para trás. Porque não tive a sua rapidez, para responder e mostrar-me nos meus olhos.

22 de setembro de 2011

uma pequena vida

(para homens de natureza morta)




lorenzo na sua meia-idade,
meio vira-lata,
mais ou menos triste,
com meia barriga de chopp,
nunca conseguiu fazer algo por inteiro.

hoje é um homem metade viril,
a outra metade broxa.

19 de setembro de 2011

minha hermana

risca espaços inabitados

grava destinos sem saídas


humaniza seu corpo,

com órgãos


rastreia um grito presente

ou amores imaculados


não tem horizontes


somente telas e cores frutíferas


vivencia sua arte

parida


até que se torna uma bolha:

cansada.



17 de setembro de 2011

decupagem

No primeiro semestre deste ano, fiz uma oficina literária, ministrada pelo escritor Marcelino Freire
Foi um momento bastante especial, descobri o quanto escrever é importante para mim. Ganhei coragem para encarar a escrita e seus meandros. E de lá pra cá, ando pegando o boi pelo chifre. Escrevo e leio mais e mais, para um dia dar um rumo, um norte para o meu interesse pela Literatura. 
E no curso escrevi um texto chamado Decupagem, que tinha o tema: uma grande saudade. Daí, tal texto teve uma boa repercussão, do Marcelino e das pessoas que ouviram a minha leitura. 
Assim, ganhou um sentido tão interessante, que tive a ideia de transformá-lo num curta-metragem.
E esses dias, o destino colocou uma garota bastante sensível para essas coisas, de vida, amor e existência, no meu caminho. A Noelle é diretora do curta A janela poética, que acabou de participar do Curta Santos - Festival de curta-metragem de Santos.
Apresentei o texto e pedi para ver se via ali um filme.
Dito e feito, comprou a ideia. Em breve, acho que Decupagem vai ganhar vida cinematográfica.
Então, para os meus amigos leitores acompanharem, deixo-o aqui.
Mas além disso, publico também (logo abaixo) uma leitura dela, linda por sinal, para o futuro filme - tomara!

Decupagem


0:02/ 2:46

Meus cabelos ganham movimentos como marolas.

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É o começo do vídeo, Márcio e eu, indo até a Biquinha. Estamos no ônibus 08: Ponta da Praia/ São Vicente – orla da praia.

*

Domingo de outono. Poderia ser mais um domingo. Ou um outono daqueles quando todos estão em queda simples, para tempos reclusos.

0:10/ 2:46

Márcio maneja a câmera e brinca com as ondas que terminam na direção do meu cachecol. O trajeto era o mesmo de todos os dias, mas estávamos desfigurados em quadros sem galeria.

*

Eu ia sentada do lado da janela.

*

Ali, naquela cena, lembrava me sentir como o desconhecido de um livro novo.

0:25/ 2:46

Todos os detalhes são capturados. Desde o mar pela janela até o zumbido do vento que corta sem direção as covinhas do meu sorriso.

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Juntos há três meses, o programa daquele dia foi um fim de tarde para onde ele se referia como o melhor lugar da cidade. Nada mais clichê para o romantismo, íamos ver o pôr-do-sol.

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Guardava uma ansiedade controlada. Desconfiava se era capaz de medir a verdade sobre nós.

1:15/ 2:46

Meu rosto segue paralelo à linha da orla da praia. As lentes seguem aquilo que não enxergo ao longe.

*

Estamos sentados na fileira do lado esquerdo, nos bancos mais altos. Aqueles disputados por crianças, que sabem ver dali idas e vindas de carros e transeuntes.

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Sem volta, a cumplicidade demarcava um lugar para nós dois, dois em um.

1:58/ 2:46

Olho para você. De novo, meus cabelos em descompasso se desalinham com o branco e azul do mar ao norte. Márcio filma quase tudo.

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A praia está vazia. E as pessoas circulam pelo calçadão. Guarda-se a calma da estação dos poetas que decidem adiar o suicídio. É impossível desejar morrer no outono.
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Não sabia mais zelar meus gestos, todos eram para mantê-lo perto de mim. Sentia cada batida do meu coração como a cuíca de uma roda de samba. Minha devoção pelo nosso namoro era a mentira de quem não sabia nada sobre amar.

2:22/ 2:46

Volto os meus olhos para a janela, na direção do nosso destino. Márcio flagra um silêncio passivo.

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O mundo torna-se plateia e cenário, meros figurantes.

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Estava rendida. Já não havia possibilidades para não amá-lo.

2:46/ 2:46

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Saudade do amor involuntário.

Day  Rodrigues
maio/ 2011


"saudade do amor involuntário"

a disposição é uma coisa que acontece delicada. quase me pega pelo colo, no balanço deste barco no asfalto, no dispensar de toda preocupação. tenho márcio em meus olhos, mesmo que ele tenha posto o rosto a me olhar e só. engraçadas são as coisas de agora. a tudo que é eternizado, é engraçado, parece lhe cair sobre certa seriedade. "saudade do amor involuntário", foi assim que decidi chamá-lo. agora, sentada,  já não posso decidir quase nada. pois que márcio me torna paisagem, sorriso, completude.  


há pouco pensei em dizer para que descêssemos daqui, que pulássemos pela janela, que rolássemos pela areia. precisava tocar-lhe, sentir dele o cheiro real de sua presença. ao mesmo tempo, sua observação caía doce sobre mim, como parte de tudo, como anjo sem asas, me fazendo sentar outra vez. eram essas as duas naturezas. márcio, você me vê. eu era vista. eu era sua imagem de hoje. e hoje, para mim, tem o seu balançar de braços a me seguir.


acontece que agora, quando assisto a mim, minha falta se sincronicidade me irrita. mas eu sei que ele conseguiu capturar minha forma mais pura, mais simples de mim, minha agitação, talvez. minha urgência de viver.

Noelle Falchi

"eu que não sei quase nada do mar"

Para Bri


eu nunca soube muito de barcos. 
desde muito cedo, ouvia seus apitos nas manhãs da minha infância. navios que saíam do porto, atravessavam a Ponta da Praia, onde eu morava, e partiam para lugares distantes de mim. 
meu pai sabe. é um portuário nato. trabalha no ramo há mais de trinta anos. 
eu, não. sei do zumbido. do zuuuuu. do adeus em silêncio.
eu também nunca conheci um marinheiro contador de causos. e muito menos pratiquei surf. 
mas sei do cheiro da maresia. sinto-a quando coloco os pés na rua, quando saio de casa. porque morar na praia tem dessas peculiaridades. cheiro de mar/ sal abraça-o diariamente.
a minha paisagem rotineira, quando residia num dos extremos de Santos e precisava me deslocar pela cidade, era a orla inteira. só pra mim. sentava no banco mais alto do ônibus e olhava para o infinito, como quem faz uma prece para começar a labuta. 
hoje, fiz um barquinho tatuado no braço, é vermelho escarlate. marca um momento especial, de rupturas, e fecha um ciclo. talvez, o retorno de saturno, segundo a leis dos astros. diz de mergulhos. e de um amigo vidrado em barcos de papel.
diz do meu amor e o mar.
eu que não sei nada do mar. 
nem de amar.





"Eu que não sei nada do mar", por Maria Bethânia

14 de setembro de 2011

sem entrelinhas

Frente da cinemateca francesa - por Bryan Faustino
Palavras são bambas. 
São carniceiras ou mães possessivas.
Palavras não têm cor.
Estão livres de cotas.
Palavras escapam da lama dos mendigos.
Palavras vivem em bordéis e sacristias.
Nunca estão sozinhas.
Vendem a vida por outra palavra.
Palavras não saem pela culatra. 
Têm passado e futuro.
Palavras carregam fome.
São aprendizes de outras palavras.

Palavras se aborrecem.
São polidas, se bem atendidas.
Não têm identidade, nem raízes únicas.
Brotam do soluço dos loucos.
Palavras não têm ideologia.
Palavras ficam firmes, quando empacotadas em bibliotecas.
Não reclamam salários, nem pensão ou fundo de garantia.
Mas palavras não se adaptam.
Perdem a compostura.
Palavras dançam.

Todas as minhas palavras estão aqui
de trás pra frente
de lado,
esquerda,
direita,
para você me enxergar -
nua.


*Post escrito depois de assistir o curta-metragem A janela poética, e ouvir a diretora no debate, após a sessão do filme, perguntar para a plateia: por que você se entrega?; e lembrar as janelas das quais já me debrucei e todas aquelas espelhadas nos meus desejos, que não cessam a busca por outros saltos e novas entregas...

12 de setembro de 2011

puento ciego (II)

Sobrava ausência.
Entre sorrir e labutar, nunca tomou nenhuma decisão.
Ameaçou,
fuga.
Atravessou noites pueris.
E continuou...
para além do suicídio:
guardou-se
entre vão e abismo.

10 de setembro de 2011

puento ciego (I)

Assim, não. 
Não consigo enxergar até aí. 
Deste modo, não.  
Não aos jogos morais, meu senhor. 
Mais uma vez, digo, deste modo, não. 
Sim, há uma senha para o motim. 
E você vai ver, nunca será declarada. 
Não, deste modo, não. 
Lá, lá mesmo 
Não se vê. 
Ninguém vai ver. 
A verdade vai falhar. 
Prepare-se!

Sempre...