22 de março de 2012

novos ares ou declaração de amizade ou saudade

Aos meus queridos, com carinho

Quem partiu vai em partes para toda parte e se debate com as partes trazidas, daqueles guardados na margem da despedida* 

Acordei madura de ideias. Tive vontade de escrever e-mails, cartas e posts novos no blog. A minha amiga Jan escreveu de Jundiaí: Lua Nova em Áries, tempos novos, hora de colocar a criatividade e a intuição para funcionar. Gostei! Gostei tanto que mudei a cara do meu blog. Mudei as cores e o formato. Isso de mudar os "apetrechos" sempre funciona comigo. Só nunca tive coragem de mudar a cor do cabelo. Mas quando mudo a cor das unhas e do batom sempre trazem resultado. Parece que ficamos visíveis, de alguma maneira. Os amigos notam, alguns transeuntes soltam elogios pitorescos e a vontade de viver toma um jeito especial - mesmo que seja por algumas horas.

E falando em mudanças, hoje faz um mês e dez dias que estou morando em Salvador. De repente, mudei de cidade e de paradigmas. Tenho me erguido de uma forma diferente, quando levanto do sono pela manhã. É como se Salvador sempre tivesse sido minha casa, mesmo eu nunca tendo colocado os pés nela. Ando por suas ruas e avenidas e me reconheço. Olho para o azul-sem-fim do mar e vejo um horizonte promissor. Não sei ainda qual é o meu Orixá, porém, já concebo a existência deles. Caminho pelo centro histórico, mais precisamente pelo Pelourinho e tenho a sensação de ter vivido ali em algum momento - deve ser a presença dos meus ancestrais?

Ainda não consigo descrever o que é realmente morar na Bahia. Sei dessas impressões e do quanto hoje retomei desejos ou paixões sinceras. Muitas vezes nos tornamos prisioneiros de verdades ingratas e colocar o pé na estrada faz lembrar que o mundo gira e é necessário se deslocar. Eu sempre tive essa sensação, mas algo me prendia na minha terra natal. Foram vinte e nove anos e alguns meses, um punhado de amigos e  segredos literais escondidos nas ruas e canais de Santos. Mas hoje sinto que cumpri a missão por lá. Hoje quero mesmo é ser uma cidadã do mundo. Sem lenço e sem documento, como cantou Caetano? Sei lá! Mais mesmo com uma identidade em constante transformação. 

Poxa, lógico que sinto saudades, muitas saudades, dos meus amigos e familiares. Boas conversas numa mesa de bar na Rua do Comércio, tragos de cigarro na praça do Gonzaga ou horas a fio de dias caiçaras não se constroem de qualquer jeito. Quando se é filho de migrantes, sua família passa a ser seus amigos. E os meus amigos são minha família, é fato. São meus irmãos, meus companheiros para qualquer lugar aonde eu for a partir de agora. Os nossos destinos já foram cruzados. Meus filhos vão ter muitos padrinhos. Às vezes passeio por uma praia de Salvador e ao caminhar nas areias daqui, fico parafraseando Gonçalves Dias em sua Canção do exílio ("Os pássaros que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá"). A praia daqui não me leva para o mesmo mar de lá - brinco em sentimentos saudosos. 

Ao mesmo tempo, não sou exilada da minha terra, vivo em Salvador por uma opção, por uma busca pelas minhas raízes afro-brasileiras, pelo reconhecimento dos meus entes nordestinos, por um novo jeito de ser mais brasileira, menos paulista. E aí vejo que está tudo bem. Em breve, a Maria vem me visitar, e depois vem a Raquel, e vou escrevendo cartas, mandando torpedos àqueles que estão longe - e perto -, quando preciso matar as ausências. Hoje queria preparar uma festa para receber todo mundo no final de semana, vocês viriam?

Hoje acordei com ideias mirabolantes...

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*sms para o meu amigo Nego :D

14 de março de 2012

da primeira manhã de um casal

'eu faço samba e amor até mais tarde'
(Chico Buarque)


A chaleira vermelha dava pequenos estalos. Eu preparava nosso primeiro café da manhã. Pão de sal ou cuscuz, você não sabia escolher. Enquanto a água esfumaçava a tampa de vidro do fogão, dizendo que o pó de café poderia ser coado, olhei para você e você sorriu - sentado em pouso na entrada da cozinha. Três segundos depois disse que queria mesmo pão. E a chaleira fazia o grito das primeiras horas de todas as manhãs, senão vibrasse esta tão concatenada, derramando-se pela familiaridade ao redor. E você sorriu pela terceira vez. E eu já não sabia se sorria de mim ou para mim, se queria mesmo pão com café ou leite e cuscuz. Então continuou a me espiar, a fotografar os meus gestos enquanto eu levava a água fervente até o coador branco - observava para saber se me concentrava mesmo para além de nós? Entre os minúsculos grãos de café se liquefazendo e a vontade de desistir do desjejum, fui buscando aquilo que nos trouxe até aqui. Era o quê? A praia, o samba ou as leituras no sarau no Pelourinho? Foram tantas cervejas e acarajés antes de você estar na cozinha de casa, foram flertes pouco encorajados e piadas 'bonitinhas' pela espontaneidade de me ver falar coisas pouco embaraçosas, porque eu tinha medo de mentir. O aroma cafeinado se instalava no reajunte dos azulejos, então você veio sorrateiramente, com menos risos, puxou um abraço, sem sugerir, indicou que poderíamos ir para o quarto e deitar mais alguma melodia outra vez.

O café ficaria para depois.

7 de março de 2012

cartas marítimas IV

São Paulo, 23 de fevereiro de 2022.

Ana,

precisei dessas semanas de ausência, desses dias perto do Pedro, longe de todas as parafernálias que nos convocam e assombram o tempo inteiro em São Paulo - por isso, a demora para responder suas cartas. Envio os originais do meu futuro livro: Náufragos e líricos - sim, foi assim que resolvi chamá-lo. É um livro de contos. E todas as histórias e personagens estão mergulhadas na ida sem volta, no quase, no limiar, e depois apogeu da entrega, e da luta para não sucumbirem à morte anunciada, quando descobrem a inutilidade de tudo isso, mesmo não sabendo/ podendo fazer diferente. São personagens apaixonantes, mas muito ingênuas. Tive dó, muita vezes, de alguns deles.  

Não gostei muito das suas últimas cartas. Na verdade, fiquei bastante preocupada com você. Pois não consegui entender tanta fúria. Ou melhor, eu entendo sim, mas dói ver alguém rasgar os pulsos e cartografar em sua própria pele tamanho desespero. Afinal, mesmo quando sabemos de tudo isso (amores naufragados), ainda é necessário escolher uma esperança - uma possibilidade de rearranjar a dor num outro prumo, naquele que não ameace tamanho desgosto. Você é uma poetisa, minha amiga, e tem a promessa de re-significar os olhares. Quando leio e releio seus livros, lembro o quanto sou feliz pela nossa amizade, o quanto sou grata por tudo que já dividimos até aqui. Então não posso permitir essa sua briga com a idade, com o corpo. Perde-se a rigidez dos músculos, e ganha-se disposições para melhor contemplar as horas.

Pedro e eu queremos você muito bem. Venha para o Brasil nos visitar, que tal?

Minha querida, dediquei o livro ao Pedro e a você. Estou ansiosa pela sua leitura, penso que vai ter algumas surpresas. Depois da cirurgia, fiquei bastante sensível à impossibilidade de caminhar. Porque andar sempre foi uma necessidade minha de ir e vir, de partir e voltar quando eu quisesse. E nestes meses que precisei resguardar os pés e conter-me com o cotidiano às janelas do apartamento na praia, me senti limitada sem a presença da cidade e seu arcabouço de gente e concreto. A varanda de Santos emoldurava o sossego que não vemos em outras geografias, seja as praianas ou mais bucólicas. Mas também engessa os sentimentos e a vontade de desejar outros mares e horizontes, tamanha tranquilidade. 


E aí nasceu Náufragos e líricos e assim me vi disposta a pensar num outro livro, um romance. Quero escrever a história de um casal separado pela tragédia de uma menina suicida; eles não veem a morte da garota, mas vivenciam seus próprios dramas ao estarem, em momentos diferentes no local do acidente. Vamos ver o que consigo, os meus dedos estão frenéticos por estes tempos. Devo escrevê-lo em breve.

Vou aguardar sua resposta. Olha, tudo o que eu realmente gostaria de dizer para você, neste seu momento de angústias e renúncias está nestas narrativas do livro de pessoas tão femininas e estremecidas pela perda e resignação constante.

Saudades.

Um beijo e abraço,

Maria Paula


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Maria Paula corresponde-se com Ana, personagem de A janela poética, da autora Noelle Falchi em:



Tais cartas nasceram daqui:

Cartas marítimas I

6 de março de 2012

meus dias inquietantes na Bahia

Papel em branco, poderia ser o título deste post. Porém, decidi por algo escancarado: meus dias inquietantes na Bahia. É. Hoje faz quase um mês. O que parece muito mais. Às vezes tenho a impressão de ter passado um ano, já. Porque a Bahia me abraçou, me engoliu, igual aquelas paixões avassaladoras. E o que é mais interessante é o gosto da mudança - é fazer-se estrangeiro, mesmo falando português, mesmo tudo isso sendo Brasil. O diferente aqui é poder respirar a forte presença de ancestralidade africana, de cultos populares ainda respeitados por muitos. No domingo fui numa roda de capoeira angolana, e quase entrei em transe, com a roda e seus corpos dançarinos em golpes leves, deslizantes em chão de pedra e  dotados de espírito sagaz. Estávamos em plena praça pública e todos paravam para olhar, aquele jogo, cantado, suado, ao som da percussão, das vozes e do berimbau. Ali entendi o meu presente, e todo meu estado de euforia. A Bahia me abraçou, depois deu um sacode e pediu para eu ficar. Tornei-me um papel em branco, assim. Se todo escritor vive a liberdade e a solidão ao começar suas histórias, confesso: Salvador é uma festa e eu preciso me escrever nela/ dela/ com ela... e deixar escapar o silêncio do começo, até o fim.