A bolsa de tricô debruçava-se no seu colo. E a coluna semi-arqueada segurava todos os problemas dos últimos dias. Não parava de lembrar da briga com o Fábio, do anúncio da separação, da multa na carteira de habilitação, da fome, do Fábio.
Sentou nas mesas da calçada, no restaurante Otelo na Avenida Araújo Medeiros, algumas quadras do burburinho do centro.
Desde segunda-feira, nada descia direito. Estava com a boca do estômago sem espaço, com uma abertura menor que a de um funil, nada passava.
Mas não podia esquecer. Precisava buscar os documentos do carro no despachante, para depois decidir como faria com a mudança e o quase fim de namoro.
Duas semanas fora da cidade e na volta, viu sua vida estatelar-se, sucumbir ao desconhecido. Sem lugar para morar, carro guinchado - por causa do imbecil do quase-ex-namorado - e todos os planos se dissolvendo, mesmo já sabendo que ele sempre foi assim - insolúvel? SporTV e UFC. Na maioria da vezes, na maioria do tempo, os programas prediletos dele. E quando estavam juntos era diferente. Mais por obrigação? Ela sabia. Testemunhou a desordem da vida dele, na sua ausência: a bagunça do apartamento, com a dor que era vê-lo jogado como se fosse um personagem do Bukowski, sem perspectivas, preso às noites etílicas e desgraçadas.
Então, acomodada na cadeira mais próxima da rua, chamou o garçom e pediu o cardápio. E a bolsa ali, presa entre as pernas, como quem vai sair correndo a qualquer instante. Talvez por perceber um possível incômodo da cliente, enquanto aguardava escolher, o atendente gentilmente perguntou:
- A senhorita não quer colocar a bolsa na cadeira ao lado?
- Não, não... está tudo bem... obrigada! - respondeu em seguida, com uma voz rouca, ligeira e baixa.
Olhou a lista dos pratos do dia, no cardápio. Pediu o primeiro do lado direito da lista, salada, contra-filé, arroz, feijão e batata frita. Sem muita conversa, fez seu pedido:
- Pode ser esse moço, esse aqui do lado direito, PF, por favor.
- Ok, senhorita. Mais alguma coisa? Vai beber algo?
- Por enquanto, nada. Obrigada. Estou bem, estou bem. Obrigada.
A voz balbuciava o pedido, desejava logo a ausência do funcionário, queria mesmo era ficar sozinha.
E com a bolsa entre as coxas, balançava os pés, cruzados embaixo da mesa. Sentia pequenas alterações da circulação do sangue, uma espécie de formigamento? Resolveu respirar fundo três vezes, na quarta vez, sentiu o tamanho da fome. Desde segunda-feira, meu Deus, desde segunda-feira, só consigo chorar - entrecortava seus pensamentos - namorar um imbecil por tanto tempo, meu Deus - e seus pensamentos fugiam e voltavam por seus olhos esbugalhados, atrás do óculos escuro, na inconstância do corpo fraco.
Entre uma resmungada e outra, em forma de soluço para si, abaixou a cabeça e enxergou dentro da bolsa o pacote amarelo, que embalava o presente do futuro-ex-namorado. Lá estava o boné com o logo do Tolima. Havia comprado na loja de conveniências do aeroporto. Sabia que ele ia gostar. Apertou a bolsa para não lembrar, para não chorar. E as pernas começaram a formigar de novo. Balançava os pés nos sapatos como quem poderia tomar impulso e desaparecer, ou como se pudesse decolar como um helicóptero ao contrário. Os cotovelos batiam na cintura, de leve, num sinal de que o corpo inteiro expandia-se na cadeira. Era quase meio-dia, o sol a pino, a saliva seca e o coração sintonizado com as batidas dos pés, um no outro, embaixo da mesa, sem ritmo, cada vez mais rápido. Foi tentando respirar, um, inspira, expira, dois, inspira, expira, do mesmo jeito que aprendeu nos exercícios de meditação. Inspirava. Expirava. Vai, Alê. Inspira e expira. Olhou mais uma vez para a bolsa, quase afundando pelo assento, via o pacote amarelo e buscava um jeito de não buscar o nome dele. Mas naquele instante já apareciam todas as letras F Á B I O. Puxou mais ar e como quem prevê o horizonte, enxergou o prédio Paternon, o mais novo empreendimento imobiliário da região, no final da Avenida Araújo Medeiros. Duas quadras do quase-ex-apartamento deles. Lá estava, Paternon e a presença do Fábio aos arredores. Foi subindo os olhos, a cabeça, o pescoço e enxergou a bandeira do Brasil, que flamejava e deslizava no ar, do 35° andar.
Será que já estava acordado?
Olhava para o topo do Paternon, e a bandeira abarcava o sol quente e o vento. Na mesma agitação sua, enxergava o Paternon craquelar-se, num piscar de olhos, a bandeira não flamejava mais, empalidecera. Já era meio-dia? Parecia haver uma escuridão ali. Vai chover? - achava que sim. E foi trazendo os olhos de volta para o meio das pernas, para a bolsa entreaberta - com o pacote amarelo. Sentiu um aperto daqueles igual saudade, igual a tristeza das ausências, das rupturas, das separações. Inspira e expira. Inspira. Expira. Desconexa de qualquer sensação de realidade, esmagou a bolsa no colo, e trouxe o rosto para frente, já sendo observada pelo garçom com a bandeja em sua direção:
- Moça, seu almoço está aqui. A senhorita quer mais alguma coisa?
- Não, obrigada.
Falou num tom só. E continuou, sem qualquer simpatia:
- Por favor, quanto é esse prato? Não vou comer, não. Toma aqui, pega o troco pra você. Tenho que encontrar o Fábio. Obrigada. Mas preciso ver o Fábio agora mesmo.
Disse tudo de uma vez, vomitando angústias e renúncias, medos e irrealidades.
Saiu da mesa com a bolsa aberta, e o garçom perplexo, estático com os pratos nas mãos.
Em passos largos, desdobrava-se para enfrentar aquela longa avenida em direção ao Paternon. Pernas trêmulas, precisava encontrá-lo, de qualquer maneira.
(continua, 'necessidade urgente' minha de narrar uma vida, uma história...)
Este texto nasce paralelo ao conto do Wilson Franco: "Do Majestic ao Paternon", de onde nasceu a Alê:
http://errancias.wordpress.com/2011/11/04/do-majestic-ao-partenon/